#3 A descolonização do conhecimento em Portugal – um início de caminho

ZOOM Fenêtres lusophones

Janela n°3 - Diasporas africanas em Portugal, parte n°2, militantismo: antiracismo, revendicação, desconstrução dos preconceitos
Print Friendly, PDF & Email

Passados 40 anos das independências dos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), ainda há muitos passos a terem de ser dados para a descolonização e desmistificação do conhecimento em Portugal. No entanto, sociólogos, antropólogos, historiadores e outros investigadores sociais têm feito por mostrar outras narrativas e perspetivas sobre as ex-colónias, apesar de ainda haver resquícios, no próprio meio académico, do discurso de que os portugueses têm um olhar privilegiado sobre África, bem como de tiques paternalistas.

« O retorno à África lusófona de etnógrafos portugueses não é tarefa simples nem fácil. O passado não é apagável – é sim, transformável. Só assim poderemos inflectir positivamente a evolução desses laços históricos que, mesmo que queiramos, jamais poderemos esconjurar« , diz Margarida Paredes, antropóloga, escritora e antiga guerrilheira do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), citando o fundador do departamento de Antropologia do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), Pina-Cabral.
Para a investigadora, atualmente a trabalhar no Brasil, « os antropólogos que hoje trabalham os países africanos produzem sobretudo uma antropologia crítica que é vigilante com as categorias coloniais« , depois da cumplicidade da etnografia, em tempos, com os impérios coloniais. Segundo ela, houve uma evolução no meio académico português que é, no entanto, recente.
O eurocentrismo
O antropólogo da Universidade de Coimbra Fernando Florêncio sublinha que antes do final dos anos 90 a questão colonial « era um tabu, um trauma« . Quando esta começa a ser abordada surgem posturas críticas, mas também reproduções da mitologia do luso-tropicalismo (conceito do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre que defendia que os portugueses tinham uma especial aptidão para estabelecer relações com os trópicos.
Passados mais de 15 anos, continua a haver investigação portuguesa com uma « visão muito eurocêntrica e paternalista » sobre os PALOP, que reflete também a própria sociedade que, segundo o próprio, « é racista« . No entanto, as gerações mais novas são mais desprendidas dessa « ideia rácica« , estando a mudar « significativamente » o olhar português sobre África, salienta.
Apesar desse olhar mais desprendido e da presença de vários autores sem uma visão paternalista, um dos grandes desafios continua a ser o abandono do « paradigma do luso-tropicalismo, do bom colonizador » e da perspetiva « lusocêntrica« , refere a socióloga do ISCTE Ana Sá. « Não se pode estar a construir uma África que corresponda a uma visão e representação europeia do continente« , depois de a produção do conhecimento ter estado centrada no percurso português e em documentos e narrativas onde os africanos não tinham voz, considera Margarida Paredes, que exemplifica com o seu trabalho de campo em 2011, em que foi a primeira cientista social a ouvir os depoimentos dos sobreviventes de uma revolta em 1961, numa região de Angola, até então apenas contada por arquivos coloniais.
O antropólogo português José Teixeira, que trabalha desde 2000 na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique, refere que a hierarquização académica está muito vincada. O luso-tropicalismo ainda está presente e os universitários portugueses, « com excepções, olham para as produções locais como menores« . Sinal disso mesmo é o pouco intercâmbio de académicos bem como a fraca edição de autores africanos em Portugal. « É preciso parar e deixar de se falar como o português que chegou e que já sabe« , defendeu. Na mesma linha de pensamento, a socióloga Teresa Cunha pede « silêncio », para se poder escutar aquele que foi reduzido à insignificância. Encara o trabalho das ciências sociais também como uma forma de luta contra a « verborreia ocidental que se esforçou para silenciar o outro« . Essa mesma verborreia de que fala está presente na própria bibliografia dos trabalhos académicos. Quantos autores africanos são citados?, questiona.
Um indicador da visão paternalista portuguesa é também a fraca existência de professores dos PALOP em Portugal, quando comparada com o que acontece ao contrário, apontou Fernando Florêncio. Outro é a pouca presença da História de África no ensino universitário, observa a socióloga Marta Araújo, que recorda que a Universidade de Coimbra não tem sequer uma disciplina dedicada a esse tema. « Há muito preconceito eurocêntrico, insidioso, colonial até, oculto, mas presente« , realça Boaventura de Sousa Santos, diretor do Centro de Estudos Sociais (CES) de Coimbra. Talvez Portugal não tenha tido « o tempo suficiente« , comenta.
Ultrapassar estereótipos
« Há ainda muito trabalho a fazer » em torno dos PALOP, sublinha Cristiana Bastos, antropóloga na Universidade de Lisboa. Todavia, a investigação portuguesa tem conseguido produzir narrativas muito diferentes do legado do regime colonial, tendo como obrigação « um pensamento reflexivo e crítico, ultrapassando-se ideologias, estereótipos e o senso comum« . « É importante compreender a diversidade e retirar as referências daqui, de Portugal. Temos que ter mais partilha. Partilhamos a Língua, mas temos que partilhar histórias« , afirma Maria Paula Meneses, investigadora moçambicana do CES de Coimbra.
Já Conceição Siopa, portuguesa a lecionar no Departamento de Línguas da Universidade de Mondlane, considera que « não há uma relação paternalista« , explanando que, nos últimos 15 anos, a colaboração vem sendo « de igual para igual« . Para isso, acha que contribuiu o contexto de crise na Europa, ao mesmo tempo que África « se desenvolve e ressurge« , levando a uma alteração nas relações dos países. Também a socióloga cabo-verdiana Katia Cardoso, a fazer doutoramento no CES, frisa que a investigação portuguesa tem vindo a « reconhecer as perspetivas nacionais » dos PALOP e a trabalhar em conjunto com cientistas sociais desses países. « O investigador português já não se assume como alguém que traz a verdade« .
Boaventura de Sousa Santos realça a importância de « uma outra ciência« , em que a construção do conhecimento « não seja feito sobre, mas com« , investindo-se na participação e cooperação de cientistas sociais dos países em que trabalham. No CES, procura-se « uma ciência que vá para além das ideias feitas » e que represente « uma diversidade que o colonialismo português ocultou ou funcionalizou », sendo exemplo disso o projeto ALICE, dirigido por Boaventura de Sousa Santos, com mais de 100 investigadores nacionais e estrangeiros, que « visa repensar e renovar o conhecimento científico-social à luz das Epistemologias do Sul, com o objetivo de desenvolver novos paradigmas teóricos e políticos de transformação social« , segundo a apresentação do projeto.
Foi a necessidade de combater os estereótipos que motivou Maria Paula Meneses, do CES, no trabalho de investigação: « havia uma narrativa que não batia com a do outro lado« . Desde então desenvolveu trabalhos em torno das identidades de colonizadores e colonizados, ou sobre « novas perspetivas da Guerra Colonial« , abordando a guerra fria na África Austral e as alianças entre o regime de apartheid e o Estado Novo. « Estamos do lado dos oprimidos« , assevera Sara Araújo, do CES. Para a investigadora « a neutralidade é uma forma de se tomar a posição do opressor« , sendo necessária uma ciência longe do isolacionismo e que contribua « para a construção de um mundo melhor« , numa ligação com ativistas e movimentos sociais. Apesar de recusar uma visão « mais ideológica« , Florêncio conta que, enquanto antropólogo, quer « mostrar ao mundo ocidental que há outros mundos e culturas tão lógicas e racionais » como a portuguesa, tendo abordado questões em torno do conceito de estado e autoridades tradicionais em Angola e Moçambique.
« Há sempre militância quando se trabalha um certo tema« , comenta Marta Araújo, socióloga do CES, que começou a investigar na área do racismo, após uma série de momentos de violência nos anos 90, em Portugal, como o caso do cabo-verdiano Alcino Monteiro, morto por ‘skin-heads’ em 1995, no Bairro Alto. Nas ciências sociais, consegue estabelecer « um diálogo em que as instituições mais perto do poder são postas ao mesmo nível que os movimentos anti-racistas« . Quando se colocou a hipótese de estágio no mestrado, foi estudar « os percursos escolares de miúdos negros e brancos« . Desde então abordou questões como o silenciamento da história de África nos manuais escolares portugueses ou as semânticas da tolerância e do racismo.
A necessidade de se discutir o racismo
Os trabalhos de investigação sobre as populações imigrantes em Portugal, nomeadamente as oriundas dos PALOP, começaram a intensificar-se nos anos 1990, onde a ideia dos portugueses como sendo um « povo do mundo » também estava presente, relembra Marta Araújo. Portugal queria « mostrar-se como país multicultural ». Mas a imensa produção científica « não tem contribuído para questionar pressupostos« , sendo que alguns dos estudos feitos « ilibam as estruturas estatais« . Há « um silenciamento político muito forte » do racismo. É uma questão encoberta, tendo as ciências sociais um duplo desafio: mostrar outras narrativas e olhares, mas também « perceber como se constrói uma narrativa que torna natural que essas outras vozes não existam« . Margarida Paredes concorda, considerando a desconstrução do olhar etnocêntrico como fundamental para um país « onde há um discurso hegemónico de negação do racismo« .
« Penso que as ciências sociais poderiam ter um papel maior na luta contra o preconceito« , afirma Ana Sá, constatando que esse papel é também diminuído pelo pouco tempo de antena que os cientistas sociais têm na comunicação social. « Transformar as mentalidades é um desafio. Podemos dar pensamento crítico para se ultrapassar o racismo, mas isso não chega. A superação de preconceitos é um trabalho muito mais longo« , alerta Cristiana Bastos.
Que futuro ?
Apesar de todas as vicissitudes, silenciamentos ou paternalismos, um dos principais desafios que se assoma à investigação portuguesa de momento são os constrangimentos financeiros motivados pelos cortes na ciência em Portugal. A juntar-se a essa componente, há a exigência de um « fast knowledge » de « investigação a metro », que em nada é compatível com um trabalho em torno da descolonização do conhecimento, apontou a investigadora do CES, Sara Araújo. Com menos trabalho de campo, torna-se mais difícil continuar o processo de desmistificação de um conhecimento que, durante muito tempo, foi votado à insignificância.

João Gaspar

(1) Sobre o lusotropicalismo, ler o nosso artigo da janela lusofona n°1, Le lusotropicalisme dans le colonialisme portugais tardif, de Cláudia Castelo. Versão portuguesa original na Buala: http://www.buala.org/pt/a-ler/o-luso-tropicalismo-e-o-colonialismo-portugues-tardio.Lire ici la version française.///Article N° : 12861

  •  
  •  
  •  
  •  
  •  
  •  
  •  
  •  
Les images de l'article





Laisser un commentaire